22 de maio de 2025
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O papel dos médicos contra o ataque dos escorpiões

O papel dos médicos contra o ataque dos escorpiões
Marketing para médicos

A ocorrência de acidentes envolvendo escorpiões no Brasil aumentou 150% na última década, aponta um levantamento publicado no início de maio no periódico Frontiers in Public Health.[1] Foram mais de 1 milhão de casos entre 2014 e 2023, número que pode triplicar até 2033 se nada for feito.

“Os números oficiais mostram um cenário profundamente preocupante, mas a realidade é provavelmente muito pior. Os acidentes com escorpiões não são apenas um problema emergente de saúde pública — são uma epidemia oculta que cresce sem controle. […] Essa crise silenciosa continua a aumentar, colocando um número crescente de vidas em risco”, diz a publicação.

A resposta ao artigo foi imediata, conta a primeira autora, Dra. Manuela Pucca, que é imunologista e professora na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. “O trabalho teve um ótimo alcance e estamos felizes. Acho que agora começarão a olhar de forma um pouco diferente para esse problema, com novas políticas públicas, campanhas de prevenção e mais pesquisas para, assim, tentar controlar os ataques de escorpião.”

Entre 2014 e 2023, foram notificados no país 1.171.846 casos de acidentes escorpiônicos, com um aumento médio de 10.363 casos por ano no período. [1] O estado de São Paulo foi o maior notificador desses acidentes, e a Região Sudeste foi a que notificou mais óbitos em 2023 (55,72%). As maiores taxas de letalidade foram encontradas nas Regiões Sudeste e Centro-Oeste (0,08%). [2]

A Dra. Manuela destaca que, na realidade, os números podem ser ainda maiores. “A subnotificação é um desafio e não somente por uma questão estatística, é um grande obstáculo à implementação de medidas eficazes de controle.”

O estudo, que contou com a colaboração de pesquisadores da Unesp de Botucatu, das Universidades Federais do Amazonas (UFAM) e de Roraima (UFRR) e da Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto), estima que até 2033 devem ser registrados mais de 3 milhões de casos, sendo 2.148.576 na Região Sudeste, 182.836 no Sul, 1.383.800 no Nordeste, 158.573 no Norte e 404.219 no Centro-Oeste.

As vilãs

Entre as mais de 100 espécies de escorpião catalogadas no Brasil, o escorpião-amarelo (Tityus serrulatus) é o principal causador de acidentes. Encontrado principalmente no Sudeste e no Centro-Oeste, vem ampliando sua distribuição geográfica nos últimos anos.

As mudanças climáticas, marcadas por verões mais quentes e períodos alternados de chuvas intensas e secas prolongadas, facilitam a proliferação do escorpião. “Antigamente não tínhamos [escorpião-amarelo] no Sul, por exemplo, e agora temos”, conta a Dra. Manuela.

A espécie se destaca por sua capacidade de multiplicação e grande resiliência, podendo sobreviver por até 400 dias sem comida. Apesar de também se reproduzirem sexuadamente, as fêmeas podem fazer a partogênese e, sozinhas, colonizar novas localidades.

Especialmente em áreas com infraestrutura precária, saneamento inadequado e má gestão de resíduos, criam-se ambientes ideais para a proliferação dos escorpiões. “O grande problema é que eles gostam da cidade, onde não há predadores, não há galinhas nem corujas. Até nos condomínios de alto padrão da cidade há escorpiões.”

O Ministério da Saúde não recomenda a utilização de controle químico, mas sim do controle ambiental, evitando o acúmulo de lixo e entulho, por exemplo, além da busca ativa pelos indivíduos. “O escorpião é resistente até a bomba nuclear. Quando fazemos a dedetização, o produto não mata [os escorpiões], apenas os incomoda, e eles mudam de lugar”, afirma a Dra. Manuela.

A anamnese é o mais importante

Crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas são especialmente vulneráveis. “O profissional da saúde tem que se capacitar para entender melhor a sintomatologia e não deixar passar, por exemplo, um acidente escorpiônico numa criança, num adulto com problema cardíaco, num um idoso ou numa pessoa com diabetes”, explica a imunologista.

A peçonha de escorpiões do gênero Tityus é formada principalmente por proteínas de baixo peso molecular que atuam em canais de sódio e potássio e causam a liberação massiva de neurotransmissores adrenérgicos e colinérgicos, além de outros fatores responsáveis por potencializar as toxinas liberadas pelo animal. Os óbitos costumam ser causados por edema pulmonar e choque cardiogênico. [2]

Pessoas com diabetes constituem grupo de risco, pois, ao adentrar a corrente sanguínea, o veneno estimula a liberação de adrenalina e noradrenalina — hormônios que promovem a quebra das reservas de glicogênio no fígado e interferem temporariamente no funcionamento das células pancreáticas produtoras de insulina.

Nesses casos, o atendimento médico imediato é essencial. A taxa de letalidade dos acidentes escorpiônicos cresce à medida que aumenta o tempo entre o acidente e o atendimento médico, variando de 0,05% para aqueles que são atendidos na primeira hora após o acidente a 0,12% para quem demora entre 12 e 24 horas.

O diagnóstico de envenenamento após acidentes escorpiônicos é eminentemente clínico-epidemiológico, pois não é feito na rotina hospitalar exame laboratorial para detecção do veneno circulante.

Alguns exames complementares, como eletrocardiograma, radiografia do tórax, ecocardiografia e exames bioquímicos são úteis para auxílio no diagnóstico e acompanhamento de pacientes com manifestações sistêmicas.

A maioria dos acidentes causa apenas náuseas leves, agitação e taquicardia relacionados à dor. Nos casos mais graves, a peçonha do escorpião pode causar efeitos sistêmicos, como náuseas, bradicardia, hipertensão e hipotensão.

A atenção primária precisa reconhecer se ocorreu um acidente escorpiônico e, se sim, se ele provocou ou não um envenenamento indicativo para uso de soro antiescorpiônico, de preferência (ou, na falta deste, de soro antiaracnídico). O tratamento com soro antiofídico é indicado nos casos de manifestações sistêmicas menores e maiores (associadas ou não a alterações laboratoriais).

No Brasil, o único produtor desses medicamentos é o Instituto Butantan, e eles não estão disponíveis na rede privada. Para receber o soro, o paciente deve ser direcionado aos hospitais de referência para acidentes envolvendo animais peçonhentos. Profissionais de saúde também podem contar com a assistência do Centro de Informação e Assistência Toxicológica da sua região.

Atenção às crianças

Crianças de até nove anos foram as vítimas com mais notificações de óbitos (33,59% em 2023). A razão específica não está clara, mas, em comparação com a faixa etária de 40 a 49 anos, têm uma estimativa de chance de evoluir ao óbito de 5,89 (intervalo de confiança de 95% de 2,97 a 11,72; p < 0,05). [2]

“O principal sintoma é a dor. Não adianta procurar a picada, porque muitas vezes não se vê, mas a criança fica muito agitada e pode ter taquicardia e espasmos”, conta a Dra. Manuela.

O papel dos médicos, principalmente pediatras, é alertar os pais e informá-los para que possam prevenir a picada. Os acidentes costumam ocorrer com maior frequência à noite, durante o verão e no interior de residências.

Os pais devem ser instruídos a deixar o berço longe da parede, não deixar os lençóis encostarem no chão — para que o escorpião não consiga subir à cama —, chacoalhar sapatos e roupas antes de vesti-los e proteger os ralos da casa para evitar a entrada dos animais. “A prevenção é a principal estratégia”, afirma a imunologista.

O artigo defende a criação de campanhas de conscientização pública sobre os riscos de acidentes envolvendo escorpiões, indicando medidas preventivas e alertando para a importância de buscar atendimento médico imediato. Para enfrentar o problema de forma sistêmica, os autores também destacam a importância de identificar possíveis falhas na assistência médica, fortalecer a rede de atendimento emergencial e promover a capacitação contínua de profissionais de saúde para que possam atuar na identificação dos sinais de acidente escorpiônico grave.